Rosa Magalhães |
A incrível história do homem que só tinha
medo da Matinta Perera, da tocandira e da onça pé de boi
Em Rio Branco era assim, um florestão envolvendo a cidade. Ninguém adentrava
na mata – “Tá doido seu?” Era habitada pela bruxa Matinta Perera, que calava o
uirapuru mas que sumia com a chuvarada, por um bicho brabo, o gogó de sola, de
dentada perigosa feito cobra, pela formiga tocandira, pela onça do pé de boi, que
todo mundo jura que existia, com pé de boi e tudo. Pois foi lá nesse lugar tão longe
que nosso personagem passou a infância.
Foi crescendo até que um dia chegou a hora de voltar para o Rio de Janeiro, sua
terra natal e onde passaria o resto de sua vida.
No Lido é que começou a brincar carnaval, ouvindo “Mamãe eu quero” e
“Touradas em Madri”. O bloco de sujo de que fazia parte ensaiava no cemitério. A
molecada se encontrava perto da quadra IV, que ainda estava em construção, e os
defuntos ali enterrados não reclamavam do barulho.
“A avenida Rio Branco era um deslumbramento só” – mão dupla, tudo
decorado, cheia de grupos fantasiados. Entre os carros, desfilavam os cordões,
grupos e blocos com muitos pierrôs, arlequins, tiroleses, holandeses e muitas
colombinas também.
Passa o tempo, passa a guerra, passa a ditadura de Vargas, o tempo vai
correndo e nosso herói vai se tornando mais adulto e mais valente. Essa avenida
Rio Branco, dos desfiles carnavalescos, era a mesma que abrigava o Teatro
Municipal, a Biblioteca Nacional, o Museu e a Escola de Belas Artes. E lá foi ele,
atraído pelas artes, para a tal escola, e também para o teatro, onde trabalhou
por muito tempo. Foi desse local, numa janela do andar superior, seu camarote
exclusivo, que viu pela primeira vez um desfile de escola de samba, com Natal
reclamando e a Portela evoluindo, alí , naquela mesma avenida.
Um dia, foi convidado para fazer parte do júri das escolas de samba. Aceitou.
E foi também na Avenida Rio Branco que, encarapitado num palanque de
madeira, viu um desfile bastante sui-generis. “A primeira escola quebrou o eixo
do carro... Que entre a segunda.... Mas a segunda só entraria se a primeira
entrasse.... Então que entre a terceira... E nada da terceira, e nada da quarta
também – Às onze e meia da noite, chega alguém avisando que a quinta iria
desfilar – até que enfim...”
A quinta era o Salgueiro, apresentando enredo sobre Debret – o que cativou
nosso jurado: em vez de “Panteão de Glória”, “Batalhas de Tuiuti”, etc., cantava
um artista – Debret.
Foi desse dia em diante que nosso personagem tornou-se carnavalesco e
salgueirense – as cores vermelho e branco ainda por cima o remetiam ao time de futebol lá do Rio Branco, quando ainda era menino.
Não esperava receber o convite para desenvolver o enredo para o Salgueiro,
no ano seguinte. Escolheu a resistência negra durante o período da escravidão,
Nzambi dos Palmares, ou Zumbi dos Palmares, assunto que não era focalizado
pelas escolas. Virou filme, e Zumbi hoje é símbolo de resistência.
Descobriu para o povo não só o Nzambi como Xica da Silva (foi um estouro!!),
Aleijadinho, e acabou desencavando um enredo sobre uma visita de um rei negro a
Mauricio de Nassau – cuja música foi cantada não só no carnaval como em estádios
de futebol, casamentos, e até hoje faz sucesso – Olêlê, Olálá, pega no ganzê, pega
no ganzá...
Apesar das vitórias, havia uma certa crítica negativa a ele, dizendo que não
se deveria interferir numa manifestação popular. Tinham esquecido que, desde
a década de 40, as escolas contratavam artistas eruditos e profissionais para
realizarem seus enredos.
No ano do IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro, o tema escolhido foi
“História do Carnaval Carioca”, que retratava o carnaval carioca e o baile dos
pierrôs, produzido por Eneida todo ano. Jogaram muito confete e serpentina
durante o desfile, e os garis estavam esperando o Salgueiro sair da avenida para
limpar tudo antes do desfile da Portela. Provocativos, os salgueirenses disseram
que aquela era a comissão de frente da Portela. Os portelenses obrigaram os garis
a irem limpando a pista no final do desfile do Salgueiro. Foi a apoteose – “Puxa,
não esqueceram nada, tem até os garis limpando o final da festa!” Esses garis
foram aproveitados mais tarde pelo Joãozinho Trinta no seu famoso desfile dos
Ratos e Urubus. Na época, João era aderecista e bailarino. Acabou abandonando a
dança e tornou-se carnavalesco, mas esta já é uma outra história...
O nosso herói fez outros carnavais vitoriosos. Depois, passou a bola adiante e foi
se dedicar a vários afazeres nas TVs para as quais trabalhava.
Um dia, cansado da vida, foi embora, acho que um pouco contrariado, pois viver
foi sempre uma aventura que encarou sem medo.
Deve ter sido recebido por uma extensa corte – Nzambi, Aleijadinho, Xica da
Silva e outros tantos negros e mulatos que fazem parte da cultura deste país
mulato. Agitando bandeirinhas, eles gritaram em coro: “Pamplona, Pamplona,
Pamplona....”
Rosa Magalhães
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