Evelyn Bastos |
Vai doer na turma da dieta detox: a mulata escala um Big Bob — e um milk-shake! — na maior sem-cerimônia, antes de assumir, docemente constrangida, que sanduíches são sua perdição. Bobagem. O totem calórico não dá nem para a saída, diante da irretocável beleza da moça, que, com sua história curta e impressionante, protagoniza mudança preciosa num cardápio enjoado do carnaval carioca. Evelyn Bastos, 20 anos, será consagrada, no reino da Sapucaí, rainha de bateria da Mangueira, para refundar uma ordem que estava exilada no passado da função, hoje praticamente reduzida a celebridades da TV e musas bombadas de plástico. Com ela, o molho é bem outro: curvas, samba no pé e uma vida inteira de amor inegociável pela Estação Primeira.
Quando a verde e rosa pisar na avenida, no início da madrugada da segunda-feira de folia, Evelyn viverá o ápice afetivo de uma história tatuada em seu DNA. Valéria, sua mãe, ocupou o posto em três desfiles nos anos 1980, eleita pelos próprios ritmistas — protocolo da época —, e sambou grávida da filha mais velha, na ala de passistas, em 1993, o do enredo “Dessa fruta eu como até o caroço” (quinto lugar, na festa vencida pelo Salgueiro com “Peguei um ita no Norte”). Porque dinastias são um dos alicerces da Mangueira, desde sempre.
— Mas minha mãe é muito crítica. Vive me cobrando para melhorar — reclama a jovem, diante do olhar cúmplice (e orgulhoso) de Valéria.
O rigor materno deu resultado. Agora, a segunda geração da família reinará à frente da mítica orquestra verde e rosa, no mais recente capítulo da trajetória que faz dela uma espécie de Neymar do samba. Evelyn é um fenômeno do paticumbum. No fim de 2012, venceu o difícil concurso de rainha do carnaval, disputado por passistas de diversas escolas cariocas. E olha que ela quase não entra na disputa. Apesar dos incentivos dos amigos e vizinhos da comunidade — onde vive desde que nasceu, em agosto de 1993, com os pais e a irmã de 8 anos numa casa modesta, próximo ao Largo do Careca, um pouco além do Buraco Quente, parte baixa da favela —, tinha dúvidas e acabou por se inscrever somente no último dia. Achava-se jovem demais. Além disso, jamais uma filha da Mangueira conquistara o posto, cobiçado por 11 entre dez mulatas do carnaval.
— Eu queria levar o nome da escola àquele lugar que é importante para o povo do samba — relembra ela, que teve apoio total do então presidente, Ivo Meirelles, na aventura.
Na corte do carnaval
Na final, disputada em novembro na Cidade do Samba lotada de torcedores de várias participantes (a disputa mobiliza a tribo do carnaval), Evelyn bateu um bolão. Além do samba e da beleza, exibiu, na entrevista no palco obrigatória às candidatas, impressionante maturidade para quem, à época, tinha 19 anos. E bateu adversárias até 15 anos mais velhas.
Ser da corte do carnaval — como o povo da folia denomina o grupo formado por Rei Momo, rainha e duas princesas — significa entregar-se durante um ano à rotina de compromissos, que inclui visitas a quadras de escolas e blocos, presença em ensaios e desfiles e viagens pelo Brasil e ao exterior. Pauleira que transforma muitas musas em plebeias da falta de profissionalismo. Evelyn conquistou todos na Riotur (que cuida da corte) justamente pelo comportamento exemplar. Em setembro, ela foi a estrela de uma excursão do grupo por seis cidades do Japão. Numa das últimas paradas, em Tóquio, ao fim de uma viagem insone de trem-bala, o grupo soube que haveria uma homenagem de fãs do carnaval carioca, alunos de uma escola da cidade. Parecia ser algo ligeiro, mas eles foram recebidos por uma miniescola de samba, com mestre-sala e porta-bandeira, passistas e uma bateria que tocava à perfeição o samba da Mangueira campeão de 2002 (“Brazil com Z é pra cabra da peste, Brasil com S é nação do Nordeste”).
Entre meninas e meninos japoneses surpreendentemente habilidosos na batucada, Evelyn dominou a cena com seu bailado espetacular, ainda fazendo o papel de professora dos menos bambas. Era apenas a segunda viagem internacional dela, que em abril de 2012 fora à Argentina, no espetáculo anual dos sambistas cariocas na cidade de San Luis.
— Rainha do carnaval será sempre meu maior título individual. Agora, na Mangueira, realizei um sonho da vida inteira — compara.
Maior rainha de bateria da história verde e rosa, Tânia Bisteka apresenta-se como testemunha para atestar que os planos de sua sucessora vêm de longe. Quando tinha 8 anos, Evelyn foi levada pela mãe para o curso de passista, ministrado no Palácio do Samba, a quadra verde e rosa. Encenou-se, de novo, a ciranda da dinastia dos bambas.
— O que você quer ser na Mangueira? — perguntou Bisteka, catedrática na dança do samba.
— Vou ser rainha de bateria, igual a você, tia — respondeu a menina, cheia de convicção.
A professora doutrinou a aluna por quatro anos. E hoje constata que ela tinha razão.
— Desde cedo, ela mostrou todas as qualidades — atesta Bisteka.
(No fim do ano passado, as duas se reencontraram num ensaio na quadra, que desembocou numa homenagem emocionante da discípula. Evelyn desceu do palco da bateria e recebeu a antecessora num abraço longo e agradecido).
A cena de 12 anos atrás foi o preâmbulo de um enfileirar de coroas do prodígio verde e rosa. Evelyn foi musa, princesa e rainha da Mangueira do Amanhã. Em 2005, com apenas 11 anos, estreou entre as passistas adultas da Estação Primeira, e, aos 14, entrou para o grupo que faz shows pela escola. Com 16, virou uma das musas da comunidade (mulatas que desfilam como destaques de chão, em frente às alegorias) e, dois anos depois, representou a Mangueira em outro cobiçado concurso de beleza carnavalesca, o do Caldeirão do Huck. Você aí já adivinhou — foi campeã.
Tanto sucesso não altera o tamanho que o carnaval tem na vida da nova rainha. Evelyn garante que, para ela, a folia será sempre um amor incapaz de arranhar a determinação de aluna modelo. A começar pela Escola Tia Neuma, mantida na comunidade pelo colégio Santa Mônica, onde ficou até a 4ª série.
— Ela só tirava 10. Um dia, por causa de um 9,8, chorou até encharcar a blusa — recorda Valéria, agradecida.
O desempenho chamou a atenção de Albano Parente, dono da instituição de ensino, que lhe ofereceu bolsa integral dos estudos. O material escolar teve patrocínio de Chiquinho da Mangueira, o atual presidente. Bons investimentos — hoje, Evelyn está no terceiro período de Educação Física na Uerj. No vestibular, passou também para UFRJ e UFF, sem usar o sistema de cotas.
— Sou a favor. Era direito meu, como de todos os negros brasileiros, mas não consegui os documentos necessários a tempo — conta ela.
Simples assim. Evelyn não dá sinais de que perderá o prumo da própria vida. Mantém o padrão do colégio nas notas da universidade, escolhida também por razões geográficas. A rainha vai a pé da Mangueira até lá, mão na roda para economizar o dinheiro da condução e aliviar o apertado orçamento da família de pai pintor de automóveis e mãe costureira. Um rigor que se acentuou dia 29 de setembro do ano passado. Todos saíram para distribuir doces em homenagem ao Dia de Cosme e Damião e, quando voltaram, o segundo andar da casa estava em chamas. Evelyn perdeu várias roupas que comprara no Japão. Ao menos, a coroa e a faixa de rainha do carnaval foram salvas — estavam na casa da avó, também no morro.
A vida no reino de Cartola, Dona Neuma e tantos outros bambas não a incomoda. Ainda assim, a mulata alimenta o brasileiro sonho da casa própria em outro lugar, para dar mais conforto à família. Para ela sozinha, nem precisa. A nova rainha está de bem com a vida, como referendam seus belos sorrisos.
Duas horas e meia de malhação
O apego aos exercícios e o personal trainer Renan Brandão, 31 anos — seu namorado há nove meses —, ajudam a preservar o corpo perfeito, à razão de duas horas e meia de exercício, cinco dias por semana. Dá e sobra para manter os 67 quilos — 90cm de busto, 70cm de cintura, 102cm de quadril — perfeitos para seu 1,65m. Tanto que, nas refeições dos sábados e domingos, as besteiras estão liberadas, porque Evelyn, benza Deus, não segue a bula fanática das bombadas da folia. Sequer tem próteses de silicone, tampouco pretende pôr, num futuro visível.
— Na avenida, uso um enchimento no sutiã da fantasia e tudo bem.
O despojamento está entre os encantos dela, expresso, por exemplo, no critério de escolha da praia preferida:
— O Leme, ponto final do ônibus que passa aqui na Mangueira.
O estilo da mulata encantou outra professora, Nilce Fran, que conheceu a aluna com 12 anos e dá a ela um veredito nota 10.
— A Evelyn sempre teve maturidade, firmeza e determinação — elogia a mestra, principal formadora de passistas do Rio, no Projeto Primeiro Passo, mantido pela Portela e pelo Sesc de Madureira. — Deu para ver logo que era um prodígio. Estava quase pronta, fiz apenas pequenos ajustes na dança. Ela vai brincar na frente daquela bateria — prevê.
E será à vera, porque Evelyn vai desfilar integrada à apresentação dos ritmistas, não apenas como um enfeite à frente da ala. Com qualquer desfecho que os orixás lhe reservarem, a filha de Iemanjá tem certeza de que viverá a maior emoção de sua vida.
— Não sei as outras escolas, mas a Mangueira é diferente. Pode passar sem fantasia, vestida com sacos plásticos, porque nosso show independe da beleza. Nosso combustível é o orgulho de vir de onde a gente vem — traduz o amor moderado por doses sólidas de sensatez. — Nunca vou viver disso, porque sei que carnaval um dia acaba.
Com Evelyn Bastos de rainha, tomara que demore.
Fonte: Jornal O Globo
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