Mangueira 2012 |
"Vou festejar! Sou Cacique, Sou Mangueira!"
Tudo começou na África, num tempo em que eu era ainda moço e minha tribo estava a mercê do perigo e os sacerdotes cuidavam de expulsar com reza forte as vibrações de má sorte que rondavam nossa morada. Lembro-me que os mensageiros da morte vieram de longe, do outro lado das águas, talvez, não tinham sequer no corpo o bronze da nossa pele, não tinham os lábios carnudos, eram estranhos em tudo! E até mesmo esses detalhes que constroem a nossa face, neles eram diferentes. Juro que inocente, pensei até em disfarce. Conduzido pela dor, fui levado prisioneiro ao traiçoeiro Negreiro, o reino da apatia. Lá, sujeito as doenças e a fome que habitavam aquele porão sombrio, caí no mais denso e frio estado de melancolia. E era como um açoite, a escuridão da noite, toda vez que ela chegava. E eu sofria pesadelos, acordava assustado. Ainda na inocência, confundia a luz da vidência com as trevas dos maus presságios. Ao desembarcar, os pés feridos, descalços, vi quando o sal do oceano espalhou-se sobre o chão molhado desenhando uma linda concha do mar e, ouvi a voz de Iemanjá me falar: este "Mundo" é o teu "Novo" lar! Prepara-te, o teu futuro te reserva coisas lindas, surpresas te virão ainda. Já em terra firme, nos primeiros anos depois que saí da minha terra, suportei a mão pesada da escravidão e as feridas da solidão. Certa vez, escondido pelo breu da noite, resolvi caminhar na mata. Eu já andara bastante. Com a respiração ofegante, parei pra descansar um instante.
E o sono foi me apagando, a cabeça meio tonta, eu já nem me dava conta do perigo de dormir longe da senzala, do povo da minha tribo, sem a proteção de um abrigo. E ali sonhei meu destino. No sonho um guerreiro caçador, o cacique dos índios, passeava naquelas terras e me viu sentado sob uma tamarineira que ele havia plantado no seu tempo de menino. Sentou-se ali do meu lado, desenhou com seu arco, no chão, uma pequena flecha e, com amabilidade, perguntou a minha idade, quis saber em que cidade eu havia nascido. E eu, me sentindo aà vontade lhe falei dos deuses iorubás, da minha terra natal, do cordão umbilical, do rio da minha aldeia. E ele, com calma, me falou do poder das folhas e das raízes que transformam em cicatrizes ferimentos e mordeduras de aranhas e de serpentes; dos banhos quentes de algumas ervas e sementes, que curam até os doentes de alma. Ao voltar pra senzala era como se meu coração tivesse fala. O Rio de Janeiro era o meu novo terreiro e nas batucadas, nas festas, na alegria das ruas, nas brincadeiras do povão, encontrei meu destino e enganei a solidão. Quando o Entrudo chegava uma maravilha de ruídos invadia as ruas, um barulho encantador que contrastava com a sujeira reinante. Divertidas batalhas com limão de cera, água e farinha branca atiradas entre os participantes aconteciam a todo instante. Zé-pereira, bumbos, rostos e bumbuns de negros azucrinando nas praças e no passeio público, zombando, se divertindo, enquanto a viola chorava e espinoteava espantando a tristeza. E tudo era instrumento, flauta, violões, pandeiros, latas, gaitas, frigideiras de ferro, caixotes e trombetas. Instrumentos sem nome, inventados subitamente no delírio da improvisação, do ímpeto musical, na força do sentimento. Já que batucar na cozinha Sinhá não deixava, o nosso canto ecoava nas senzalas e invadia as ruas. Aliás, na rua do Ouvidor, na rua Direita ou no Largo de São Francisco tudo era canto e os sons sacudiam e movimentavam as vestimentas de cores vivas, ardentes, dançando e tateando os corpos que exalavam o doce perfume da alegria.
A elite fazia biquinho e implicava, chamava nossa festa de selvagem e brutal e que o verdadeiro carnaval estava nos salões da nobreza de Paris e Veneza. Discriminada e com as autoridades policias no encalço, a turma dos descalços e descamisados tratou de arrumar um jeitinho para continuar festejando. Com um olho no padre e outro na missa lutamos dançando, dançamos rezando e rezamos cantando. As festas, celebrações e procissões dos brancos, agora, serviam como máscaras e disfarces. Por trás delas festejávamos nossas entidades sagradas e batucávamos até o sol raiar. Organizados em Cordões carnavalescos, cantadores e dançarinos, palhaços, a morte, os diabos, os reis, as rainhas, as baianas, os morcegos e os índios também entraram na dança e colocaram a polícia pra dançar. No noturno da Praça Onze, ali mesmo na nossa "Pequena África", os desfiles do Pastoril e dos Maracatus em louvor à Ciata D’Oxum, a tia-mãe-baiana dos festejos, se tornaram a sensação e os luxuosos Ranchos cantadores, dominados pelos negros e castanhos, rompiam a massa colorida em grande animação. Para matar a sede dos cantadores e dos berradores, os refrescos de coco, os gelados de abacaxi e limão. Para a fome, bolos de fubá, pé de moleque, alcaçar, tapioca, manauê e feijoada no caldeirão. Mascarada, a elite branca se esbaldava no luxo dos salões, nos desfiles dos corsos e das grandes Sociedades. O povo preto e pobre, barrado no baile burguês, continuou dono das ruas e vielas como legítimos senhores da folia. Música, fanfarra, préstito, maxixe e, finalmente, de semba se fez samba. Abençoadas por Nossa Senhora do Rosário, na Festa da Penha, as negras suspendiam as saias rodadas e dançavam, nos requebros das ancas, no arranco das umbigadas. Enquanto os senhores rezavam na parte alta das escadarias, na parte de baixo, a sensualidade era religiosa, o ritmo dos batuques era sacerdotal e feiticeiro. Ali desaguavam os cantos e as melodias de todo o povo brasileiro e os compositores da primeiríssima geração de sambistas, testavam a popularidade do seu cancioneiro.
O tempo passou. A cidade se transformou em uma selva de pedra onde a "Onça" reinava absoluta e era a principal atração. "Vejam todos presentes, olha a empolgação, este é o Bafo da Onça que eu trago guardado no meu coração". Até que um dia, um "Cacique" bamba entrou na folia e dividiu a tribo do samba sem vacilação. "Foi lá no fundo do seu quintal que o samba pegou moral e agitou a massa, e o povo voltou a cantar e sorrir, caciqueando aqui e ali, abrindo o coração pro amor". De repente as ruas esvaziaram-se! Será que a "Onça" vacilou, foi beber água de cheiro e se afogou?! Até mesmo o bravo "Cacique" parecia cansado das batalhas de confetes e desanimou! Para onde teria ido a alegria? Onde estaria a espontaneidade que transformava cem pessoas saídas de um bairro em quinhentas, em mil, sem ninguém se conhecer? Mas o samba é eterno, não tenho medo de responder! Ele até pode agonizar, mas jamais irá morrer! A "Onça" marcou bobeira e não mais saiu da toca, mas o "Cacique", malandro, mudou de oca, foi fazer morada à sombra de uma tamarineira e ali no subúrbio da Leopoldina, abençoado por Oxossi, o pagode ecoou vindo do "Fundo do Quintal" e embalado por banjos, repiques, tantãs e pandeiros conquistou o Brasil inteiro. "Batam palmas, gritem, soltem a voz. Pra manter o pique só depende de nós"! O carnaval, a partir daí, não terminava mais na quarta-feira de cinzas. Quase sem querer, ele se fragmentou em diversas festas nos lares das famílias simples, em animadas rodas de samba, em batuques sobre mesas de bares, confirmando que a tribo do samba ainda queria apito, sem necessariamente o pau ter que comer! Isso tudo já faz muito tempo. Hoje eu chego com o vento e volto aos pés da velha tamarineira, sento-me novamente ao lado do guerreiro e de Oxossi em saudação ao meio século de história do cacique de Ramos. Nós somos as raízes e o Cacique é o tronco desta árvore que deu frutos como Jorge Aragão, Almir Guineto, Arlindo Cruz, Dicró, Mauro Diniz, Zeca Pagodinho, Luis Carlos da Vila e Neguinho da Beija-Flor, entre outros nomes, além da dindinha Beth Carvalho um bendito fruto feminino entre tantos homens.
Salve a tribo dos bambas; esse "Doce Refúgio" de pagodeiros e malandros no bom sentido da palavra. A tribo que bate tambor e faz ecoar o surdo de primeira pra saudar a sagrada tamarineira e confirmar que o bom samba também mora em Mangueira. Afina, "onde eu cheguei, nem um mortal chegou, modesta parte nessa arte, Deus me consagrou e o meu canto ecoou por todo universo, até em Marte o meu samba fez sucesso!" Por tudo isso vou festejar, pois sou Cacique, sou Mangueira! Boa sorte a todos compositores.
E o sono foi me apagando, a cabeça meio tonta, eu já nem me dava conta do perigo de dormir longe da senzala, do povo da minha tribo, sem a proteção de um abrigo. E ali sonhei meu destino. No sonho um guerreiro caçador, o cacique dos índios, passeava naquelas terras e me viu sentado sob uma tamarineira que ele havia plantado no seu tempo de menino. Sentou-se ali do meu lado, desenhou com seu arco, no chão, uma pequena flecha e, com amabilidade, perguntou a minha idade, quis saber em que cidade eu havia nascido. E eu, me sentindo aà vontade lhe falei dos deuses iorubás, da minha terra natal, do cordão umbilical, do rio da minha aldeia. E ele, com calma, me falou do poder das folhas e das raízes que transformam em cicatrizes ferimentos e mordeduras de aranhas e de serpentes; dos banhos quentes de algumas ervas e sementes, que curam até os doentes de alma. Ao voltar pra senzala era como se meu coração tivesse fala. O Rio de Janeiro era o meu novo terreiro e nas batucadas, nas festas, na alegria das ruas, nas brincadeiras do povão, encontrei meu destino e enganei a solidão. Quando o Entrudo chegava uma maravilha de ruídos invadia as ruas, um barulho encantador que contrastava com a sujeira reinante. Divertidas batalhas com limão de cera, água e farinha branca atiradas entre os participantes aconteciam a todo instante. Zé-pereira, bumbos, rostos e bumbuns de negros azucrinando nas praças e no passeio público, zombando, se divertindo, enquanto a viola chorava e espinoteava espantando a tristeza. E tudo era instrumento, flauta, violões, pandeiros, latas, gaitas, frigideiras de ferro, caixotes e trombetas. Instrumentos sem nome, inventados subitamente no delírio da improvisação, do ímpeto musical, na força do sentimento. Já que batucar na cozinha Sinhá não deixava, o nosso canto ecoava nas senzalas e invadia as ruas. Aliás, na rua do Ouvidor, na rua Direita ou no Largo de São Francisco tudo era canto e os sons sacudiam e movimentavam as vestimentas de cores vivas, ardentes, dançando e tateando os corpos que exalavam o doce perfume da alegria.
A elite fazia biquinho e implicava, chamava nossa festa de selvagem e brutal e que o verdadeiro carnaval estava nos salões da nobreza de Paris e Veneza. Discriminada e com as autoridades policias no encalço, a turma dos descalços e descamisados tratou de arrumar um jeitinho para continuar festejando. Com um olho no padre e outro na missa lutamos dançando, dançamos rezando e rezamos cantando. As festas, celebrações e procissões dos brancos, agora, serviam como máscaras e disfarces. Por trás delas festejávamos nossas entidades sagradas e batucávamos até o sol raiar. Organizados em Cordões carnavalescos, cantadores e dançarinos, palhaços, a morte, os diabos, os reis, as rainhas, as baianas, os morcegos e os índios também entraram na dança e colocaram a polícia pra dançar. No noturno da Praça Onze, ali mesmo na nossa "Pequena África", os desfiles do Pastoril e dos Maracatus em louvor à Ciata D’Oxum, a tia-mãe-baiana dos festejos, se tornaram a sensação e os luxuosos Ranchos cantadores, dominados pelos negros e castanhos, rompiam a massa colorida em grande animação. Para matar a sede dos cantadores e dos berradores, os refrescos de coco, os gelados de abacaxi e limão. Para a fome, bolos de fubá, pé de moleque, alcaçar, tapioca, manauê e feijoada no caldeirão. Mascarada, a elite branca se esbaldava no luxo dos salões, nos desfiles dos corsos e das grandes Sociedades. O povo preto e pobre, barrado no baile burguês, continuou dono das ruas e vielas como legítimos senhores da folia. Música, fanfarra, préstito, maxixe e, finalmente, de semba se fez samba. Abençoadas por Nossa Senhora do Rosário, na Festa da Penha, as negras suspendiam as saias rodadas e dançavam, nos requebros das ancas, no arranco das umbigadas. Enquanto os senhores rezavam na parte alta das escadarias, na parte de baixo, a sensualidade era religiosa, o ritmo dos batuques era sacerdotal e feiticeiro. Ali desaguavam os cantos e as melodias de todo o povo brasileiro e os compositores da primeiríssima geração de sambistas, testavam a popularidade do seu cancioneiro.
O tempo passou. A cidade se transformou em uma selva de pedra onde a "Onça" reinava absoluta e era a principal atração. "Vejam todos presentes, olha a empolgação, este é o Bafo da Onça que eu trago guardado no meu coração". Até que um dia, um "Cacique" bamba entrou na folia e dividiu a tribo do samba sem vacilação. "Foi lá no fundo do seu quintal que o samba pegou moral e agitou a massa, e o povo voltou a cantar e sorrir, caciqueando aqui e ali, abrindo o coração pro amor". De repente as ruas esvaziaram-se! Será que a "Onça" vacilou, foi beber água de cheiro e se afogou?! Até mesmo o bravo "Cacique" parecia cansado das batalhas de confetes e desanimou! Para onde teria ido a alegria? Onde estaria a espontaneidade que transformava cem pessoas saídas de um bairro em quinhentas, em mil, sem ninguém se conhecer? Mas o samba é eterno, não tenho medo de responder! Ele até pode agonizar, mas jamais irá morrer! A "Onça" marcou bobeira e não mais saiu da toca, mas o "Cacique", malandro, mudou de oca, foi fazer morada à sombra de uma tamarineira e ali no subúrbio da Leopoldina, abençoado por Oxossi, o pagode ecoou vindo do "Fundo do Quintal" e embalado por banjos, repiques, tantãs e pandeiros conquistou o Brasil inteiro. "Batam palmas, gritem, soltem a voz. Pra manter o pique só depende de nós"! O carnaval, a partir daí, não terminava mais na quarta-feira de cinzas. Quase sem querer, ele se fragmentou em diversas festas nos lares das famílias simples, em animadas rodas de samba, em batuques sobre mesas de bares, confirmando que a tribo do samba ainda queria apito, sem necessariamente o pau ter que comer! Isso tudo já faz muito tempo. Hoje eu chego com o vento e volto aos pés da velha tamarineira, sento-me novamente ao lado do guerreiro e de Oxossi em saudação ao meio século de história do cacique de Ramos. Nós somos as raízes e o Cacique é o tronco desta árvore que deu frutos como Jorge Aragão, Almir Guineto, Arlindo Cruz, Dicró, Mauro Diniz, Zeca Pagodinho, Luis Carlos da Vila e Neguinho da Beija-Flor, entre outros nomes, além da dindinha Beth Carvalho um bendito fruto feminino entre tantos homens.
Salve a tribo dos bambas; esse "Doce Refúgio" de pagodeiros e malandros no bom sentido da palavra. A tribo que bate tambor e faz ecoar o surdo de primeira pra saudar a sagrada tamarineira e confirmar que o bom samba também mora em Mangueira. Afina, "onde eu cheguei, nem um mortal chegou, modesta parte nessa arte, Deus me consagrou e o meu canto ecoou por todo universo, até em Marte o meu samba fez sucesso!" Por tudo isso vou festejar, pois sou Cacique, sou Mangueira! Boa sorte a todos compositores.
Mangueira |
Nenhum comentário:
Postar um comentário