segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

OS SENHORES DOS SONHOS NO CARNAVAL

A saga dos artistas que transformaram a figura do carnavalesco em uma profissão e revolucionaram as estruturas do desfile

Artistas transformaram a figura do carnavalesco em uma profissão
Foto: O Globo / Arte de Cláudio Duarte
Artistas transformaram a figura do carnavalesco em uma profissão 


Os primeiros raios de sol iluminavam a Avenida Presidente Vargas, na manhã do dia 24 de fevereiro de 1963, quando o Salgueiro despontou na passarela. Com a Igreja da Candelária ao fundo, a vermelha e branca deixava o público estupefato, com negros usando roupas de nobres e enormes perucas brancas. O enredo, do carnavalesco Arlindo Rodrigues, era "Chica da Silva", escrava tratada como rainha em Minas Gerais, representada por Isabel Valença. Ela estava com uma peruca de 1,10 metro de altura, pérolas e um vestido cuja cauda tinha sete metros. Na Ala dos Importantes, 12 pares dançavam um minueto, coreografado por Mercedes Batistas, primeira bailarina negra do Teatro Municipal. O público delirava ao som do samba de Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho. O resultado? Salgueiro campeão.
Era a coroação de uma revolução que teve início alguns anos antes e que mudaria a concepção plástica e os enredos dos desfiles. Em vez de temas patrióticos da história oficial do Brasil, a saga dos negros ganhava espaço. No lugar de fantasias simples, confeccionadas de forma quase caseira, surgiram os traços de artistas plásticos vindos da Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ. Ideia do então presidente do Salgueiro, Nelson de Andrade.

— Ele foi o cara que revolucionou o carnaval. Em vez de cantar o "capa e espada", cantou um artista (em 1959, convidou Dirceu e Marie Louise Nery, responsáveis pelo enredo sobre a missão artística de Jean-Baptiste Debret no Brasil) — afirma Fernando Pamplona, professor da EBA, um dos principais artífices daquela revolução. — Depois, ele veio me procurar (para o carnaval de 1960). Respondi que não entendia de carnaval. Disse para eu fazer o enredo e deixar o resto com ele. Diziam que artista não devia se meter nisso. Dane-se. Eu me meti.

"Nem melhor nem pior, apenas diferente"

A decisão de Pamplona foi só um começo. Outros artistas se aproximaram do carnaval, como Maria Augusta e o próprio Arlindo Rodrigues. A maioria no Salgueiro, escola que surgira em 1953 com o lema "Nem melhor nem pior, apenas diferente". Da chegada de Pamplona até 1971, foram cinco títulos que acabaram com a hegemonia das três grandes: Portela, Mangueira e Império Serrano. Ganhava força a figura do carnavalesco.

— Meu primeiro enredo foi "Quilombo dos Palmares". Nenhuma escola tinha cantado a cultura negra. Resolvemos contar o lado dos perdedores. Fizemos Zumbi dos Palmares, Chica da Silva, Chico Rei. Mais tarde, Dona Beija, que representava a luta pela conquista social — lembra Pamplona.

Fazer carnaval naquela época não lembrava nem de longe a estrutura de hoje na Cidade do Samba. Em 1971, Joãosinho Trinta, Rosa Magalhães e Lícia Lacerda aprendiam com Pamplona a fazer um desfile nos fundos de um quintal em Botafogo. "Festa para um rei negro" garantiu mais um título para a escola.

— Não tinha barracão. João, Lícia e eu fazíamos tudo. Uma vez, Pamplona me deu um saco de bolas de isopor para furar. Tentei com arame, não consegui. Fui no gás, acendi o fogão e esquentei o ferro. Aí, sim, furava que era uma beleza — conta Rosa Magalhães, recordando seu primeiro ano no carnaval.

Em 1976, outra escola entrou para a galeria das grandes: Beija-Flor de Nilópolis, com "Sonhar com rei dá leão". Obra da genialidade de Joãosinho Trinta, que anos antes era adericista recém-chegado do Maranhão. Os carros alegóricos e as fantasias ganharam volume e movimento. O luxo se tornou sua marca. Ele ganhou cinco campeonatos em menos de uma década.

— Um espetáculo com muita gente em cima dos carros. Ele era muito inteligente — diz Renato Lage, que, na década de 80, levou seu olhar de cenógrafo para os desfiles.

Mas o carnaval que consagrou Joãosinho foi "Ratos e urubus, larguem minha fantasia", em 1989, que ficou em segundo lugar. Ele surpreendeu e levou para a Avenida uma alegoria de Cristo como mendigo censurada pela Igreja, que cruzou a Sapucaí coberta com plástico preto e a frase "Mesmo proibido, olhai por nós".

— Diziam que ele vivia em cima do luxo, então Joãosinho fez um carnaval de lixo. Ele sabia que tinha feito uma obra genial. É insuperável. Para mim, o único marco que existe é "Ratos e urubus" — afirma Pamplona.

Outros talentos foram revelados nos anos 60 e 80: Viriato Ferreira, Max Lopes, Alexandre Louzada, Júlio Mattos e Fernando Pinto. Este último era considerado um transgressor, pois levou a acidez e as cores vibrantes do movimento tropicalista para a Avenida.

— Sem dúvida, meu maior ídolo é Fernando Pinto. Quando vi em "Tupinicópolis", na Mocidade, um índio de tênis, dei uma gargalhada — conta Paulo Barros.

Com a morte precoce de Fernando Pinto, nos preparativos do carnaval de 1988, a década de 1990 ficou polarizada entre dois estilos: o barroco de Rosa Magalhães, na Imperatriz, e o moderno, de Renato Lage na Mocidade. Juntas, as duas escolas conquistaram oito títulos em 12 anos.

— A Mocidade foi meu grande PHD, onde a química deu certo. Cheguei após a morte de Fernando Pinto. Tive que matar o mito e impor uma linha de trabalho própria. Com "Vira, virou, a Mocidade chegou", comecei a firmar um estilo voltado para a modernidade — diz Renato.

Uma nova reviravolta só aconteceria em 2004. Naquele ano, chegava à Unidos da Tijuca o até então desconhecido Paulo Barros. Dele, só se conhecia o trabalho nos grupos de acesso, em escolas como Paraíso do Tuiuti e Vizinha Faladeira, pelas quais subia o morro para catar bambu e recolher garrafas PET. Na Tijuca, ele arrebatou a Sapucaí com a alegoria do DNA, representado por componentes com corpos pintados de azul. Estava consagrada a alegoria humana.

— As alegorias tinham mulheres seminuas, esculturas. O DNA fugiu desse conceito. Foi um carro criado sem planta, executado a partir de uma ideia — diz Paulo Barros.

As mudanças também aconteceram nos bastidores.

— O carnaval era mais modesto. Porém, mais desafiador. Antes, fazia quase com cuspe. Era muito papel crepom. Isopor era chiquérrimo. Não tinha patrocínio, subsídio, nada. Tínhamos uma semana para montar os carros alegóricos. Agora, o espetáculo é outro, mais profissional — analisa Rosa Magalhães.

Raymondh Júnior

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